O Futuro da Cultura
, 2025
Versão publicada no jornal Expresso a 25 de Julho de 2025.
O Futuro da Cultura é um ensaio de Guta Moura Guedes sobre a importância da cultura enquanto um dos quatro pilares da sustentabilidade. Esta versão curta foi publicada no jornal Expresso a 25 de Julho de 2025. Este ensaio é também a base da conferência “The Future of Culture” apresentada por GMG no Spirit of Paimio 2025, a convite da Fundação Paimio Sanatorium, na Finlândia.
“O futuro da cultura
O nosso ADN é em 98,8% idêntico ao dos chimpanzés. A diferença, pequeníssima, de 1,2% foi suficiente para que nos tornássemos seres humanos. Equivale a dezenas de milhões de combinações diferentes, o que explica muitos distanciamentos significativos. Mas o que há a reter é que o ser humano – o “macaco nu” de Desmond Morris – é o único animal que cria cultura e que esta é a base da nossa evolução. Está na matriz biológica humana e é o que nos diferencia dos outros animais. Entender isto é crucial.
A cultura não tem, no entanto, uma definição simples. Nela cabe o que vai da arte à publicidade, do artesanato aos jogos de computador, da escrita à culinária ou ao jogo da petanca. Mas mais. Inclui o perfil social e intelectual de um indivíduo, a identidade de um país e a sua produção; a especificidade geográfica, étnica ou de género. Classifica grupos que se formam por partilha de escolhas, como a cultura de um clube desportivo ou de um partido político. A cultura como construção simbólica e como espaço de transformação da biologia. Como resposta criativa aos instintos e como catarse emocional. Um caleidoscópio que define o sermos humanos e que inquieta por ser tão plural, indomável e irregular.
Tem particularidades únicas: é democrática, pois nasce de um hardware biológico que todos partilhamos; é individual e, ao mesmo tempo, colectiva; a sua definição e territórios são abrangentes. O seu impacto é imensurável e é, quase sempre, lenta. Morris diz que os padrões culturais mudam mas que muitas vezes apenas reencenam instintos antigos com novos formatos, ou seja, que não escapamos à nossa natureza animal. Será? Olhando para o presente percebemos que esse é o risco que enfrentamos. É fácil identificar quais são os nossos principais problemas: coesão social, saúde, sustentabilidade ambiental, liberdade, guerra e agudização da assimetria económica. Os três primeiros implicam-nos a todos, os três últimos estão na dependência das nossas elites, políticas ou empresariais, institucionais ou vindas da sociedade civil. E as nossas elites estão fracas e viciadas nas imagens. Tal como todos nós? Tomara que não.
O que nos fez humanos é o que nos pode garantir a sobrevivência. Nesse sentido, como é que a cultura não tem ainda o papel que verdadeiramente deve ter na sociedade? No contexto europeu e português devíamos sem dúvida colocar a cultura no centro de uma visão estratégica de desenvolvimento, dando rumo a uma Europa em perda e a um Portugal que parece não ter missão. Reforçar o que une uma plataforma fragmentada e tão inigualável. Não há hegemonia, há diferença e coopetividade na cultura. Os criadores e os operadores culturais sabem-no. Já discutimos tudo sobre a sua relação com a economia, as indústrias culturais são motores de muitas economias europeias, já avaliamos o seu impacto. No entanto, continuamos a não usar a cultura para enfrentar os problemas de agora. E deixamos enfraquecer identidades locais, transformando o que de melhor temos em parques de diversão turística enquanto recebemos fluxos culturais que não conseguimos integrar. Pior: o orçamento para a cultura nos países europeus é ridículo. Em 2025, em Portugal, é 0,45% do orçamento de Estado; o da UE não chega ainda, pasme-se, a 1%. Não há investimento público na cultura, não há estímulo ao investimento privado através de leis de mecenato fiscalmente apelativas ou ainda através da redução do IVA. Tudo isto enquanto se assiste a uma desvalorização da cultura revelada pela importância que lhe é dada na composição dos próprios governos ou comissões, encaixada entre outros sectores ou grupos etários.
É uma cegueira do passado a que vivemos no presente. Comprometemos a sobrevivência e o evoluir da espécie humana porque ainda não entendemos que o nosso futuro depende do investimento que fizermos na cultura de modo a preparar seres humanos melhores, capazes de criar sociedades mais sustentáveis.
O futuro da cultura é – seria? – o futuro da humanidade.”
25 July 2025, Expresso